"E tu, bondosa alma, que te sentes tão angustiada como ela...
Consola-te com os seus sofrimentos, e permite que esta pequena personagem se torne sua amiga
(com todo vosso zelo e compaixão) que, por destino ou culpa própria, não tiveres outro mais próximo.
Não poderei recusar vossa admiração e amor para essa alma, nem ao seu caráter.
E com lágrimas, acompanhe o seu destino."

Sofrimentos do Jovem Werther (Primeiro Livro) - Goethe

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

77_ Crônicas além do mar VIII


Fim da história

   "Não, isso é impossível!"
   Desvendou o mistério, solucionou o caso, mas a resposta deveria permanecer oculta dos próprios amigos, inclusive da Micaela.
   Andando pelo corredor de volta ao quarto, Camilla não havia se conformado com a idéia que teve. Parou por diversas vezes no caminho; passou no banheiro para lavar o rosto, na cozinha para beber água e no quarto da Cecília. Ainda não era hora de lhe dizer tudo... Não deveria assustar a garotinha. Apenas contou uma pequena história para acostumá-la ao clima de mistério e tensão.

   Enquanto isso, Mica e Harumi, sentadas na cama, discutiam ainda sobre o assassinato:
 — Entendo. Você estava dormindo enquanto nós discutíamos.
 — Mas é estranho. Ela estava tão concentrada no caso, então por que ela mudou de idéia tão de repente?
 — Eu sei o que Camilla estava pensando, seu olhar denunciava. Posso te dizer?
 — Estou ouvindo.
 — A dedução dela estava parcialmente correta, mas o final estava errado. Solomon foi esfaqueado por Solange, mas neste momento ele não morreu. Solange pensou algo errado e fugiu. Até aquele momento, isso devia estar certo. De manhã, Sol acordou com nossas vozes, e logo quando ele iria abrir a porta, ele a trancou ainda tonto. Foi quando...
 — Foi quando a faca entrou no corpo do Solomon. Então o assassino...
 — Seriam aqueles que arrombaram a porta. Resumindo, Alex e o mordomo. Camilla provavelmente percebeu isso. Por esse motivo Camilla não disse nada, para protegê-los, escondendo a verdade no seu coração.
 — Harumi, sua idéia faz sentido, mas que pena que você descobriu a verdade. Há alguma forma de te deixar calada?

   Algum tempo depois, uma garota corria pelo corredor em direção ao quarto do Sol, pálida como se houvesse visto um cadáver:
 — Senhor mordomo! Senhor mordomo!
 — Pois não, pequena Cecília?
 — Harumi foi assassinada!
 — O que?
 — Vem, vamos!

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

76_ Crônicas além do mar VII


Chegando à conclusão 

— Camilla, vamos ver se o barco ainda está lá.
 — Certo. 
   Encontraram Yuki no saguão, patrulhando o hotel:
 — Garotas, alguma de vocês viu a Solange em algum canto?
 — Não.
 — Nem eu.
   Na mesma hora, outra mulher entrou no recinto. Era a empregada de Solomon. Ela não sabia o que havia acontecido com a irmã do chefe, nem o que elas consideravam.
 — Na noite passada, Solange parecia estar com pressa e saiu do resort.
   A noticia dela assustou as duas mais velhas. Yuki também não compreendeu as circunstâncias.
 — Harumi, será que ela pegou o barco e saiu da ilha?
 — Com licença empregada, foi essa a última vez que você viu ela?
 — Não posso ter certeza.
 — A que horas?
 — Acho que foi a uma da manhã.
   E foi isso mesmo que elas constataram quando foram ao píer. A lancha não estava mais lá. Resolveram voltar ao quarto e colocar as idéias no lugar.
 — Harumi, você acha que a Solange realmente matou o senhor Sol?
 — Como assim?
 — Eu estive pensando. Baseando-se no testemunho da empregada, ela saiu da ilha tarde da noite, não foi? Mas quando eu toquei o corpo dele naquela hora, ele ainda estava quente. Resumindo, quando nós o vimos, Solomon não tinha morrido há muito tempo.
 — O que você quer dizer com isso? Solange saiu do resort na noite do tufão e andou um pouco pela ilha antes de esfaquear o Solomon e fugir?
 — Não acho. Mesmo presumindo que Solomon foi morto uma hora antes de o encontrarmos, nós já estávamos acordados e andando pelo hotel, não é?
 — Sim, mas e daí?
 — Seria anormal não ouvirmos um som ou um grito?
 — Mas é estranho. Você está querendo dizer que ele ficou vivo por algumas horas depois de ter sido esfaqueado no peito e se trancou no quarto? Então se a Solange não era a assassina, qual motivo ela teria para fugir...
 — Espera! Eu sei a verdade por trás deste caso. Não há dúvidas de que Solange esfaqueou seu irmão, senão, como você disse, ele não teria motivos para fugir.
 — Bem, isso mesmo.
 — Não sei quais seriam os motivos, mas ele o fez. Devido que tenha sido um assassinato premeditado. Provavelmente eles discutiram, ele pegou a faca de cortar frutas que estava por perto e a usou para matá-lo. Mas a faca não atingiu o coração dele, pois a agenda obstruiu o caminho da faca, que acabou não causando um ferimento fatal. Mas é aí que as coisas se tornam complicadas. Solomon pode ter desmaiado pelo choque. Depois de ver isso, Solange pode ter acreditado que o matou. O problema é o que vem depois. Solomon, que acabou de desmaiar, continuou consciente até esta manhã. Quando despertou, ele ficou de pé, tonto, e lembrou-se que sua irmã tentou mata-lo. Sem pensar claramente, ele trancou a porta e depois deve ter tropeçado e caído com o rosto no chão. Com isso a faca foi enterrada no peito dele, e Sol conheceu seu fim.
   Micaela havia acordado no meio da explicação. Juntou os fatos e percebeu algo que não batia:
 — Espera, como tudo isso poderia acontecer tão perfeitamente?
 — Você tem outra explicação, Mica?
 — Solange deveria ser capaz de notar se ela realmente matou o próprio irmão ou não. Além disso, o corpo dele estava de rosto para cima. Se sua dedução estivesse correta, Sol seria encontrado com o rosto para baixo, concorda Cacá?
 — Sim, mas... Mas espere. Então...
   Algumas idéias brotaram, e tudo começou a rodar. Fitou Micaela diretamente nos olhos, mas não conseguiu pronunciar mais nada. Sentia a confusão que causou na mente das amigas, mas a compaixão tomou conta segundos depois.
 — Camilla, o que houve?
 — Bem, não foi nada... Acho que eu estava errada. Vou lá fora tomar um ar.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

75_ Crônicas além do mar VI


   Incompreensão

   Camilla foi a primeira a conseguir se mover. Caminhou até o corpo para medir a pulsação, mas o mordomo impediu o toque.
 — Não mexa no corpo — e com os dedos no pescoço dele, concluiu — ele está morto...
   Suas reações foram as mais diversas possíveis: Alex continuou imóvel; Camilla levou a mão à boca; Micaela desmaiou nos braços da Harumi.
 — Parece ser uma faca para cortar frutas, concluiu.
    Pairava um ar claustrofóbico, catastrófico naquele cômodo: a fenestra sacudia violentamente, mas não havia perigo de abrir por causa da trinca.
 — Camilla, dá uma olhada!
   Harumi apontou para a faca. Ela atravessou a agenda que o senhor guardou no bolso da camisa, o que apontava que era preciso muita força para fazer isso. Deduziram o seguinte: era seguro afirmar que o assassino era mais velho que os garotos. O fato de que Solange não foi vista em nenhum lugar significa que... Melhor não deixar mais ninguém saber disso.
    “É o melhor que temos a fazer” dizia Harumi com um piscar. Com o passar do tempo, as duas amigas aprenderam a conversar apenas com um único olhar.
 — Esta situação é, para todos os propósitos, um círculo fechado. E à primeira vista também parece ser um homicídio.
   O mordomo caminhou até a janela e continuou sua fala:
 — Além disso, ocorreu em um quarto fechado. Bem, como o assassino poderia cometer o crime neste aposento inacessível e fugir?

   Deixaram a Mica no quarto, aos cuidados da empregada. Alex ficou ao lado da amada nessa tarde. Já Yuki, que não tinha conhecimento dos fatos, só ficou sabendo que a garota tinha passado mal, nada mais.
   Do lado de fora do quarto, Camilla e Harumi conversavam, abaladas:
 — Isso parece ruim, Cá.
 — Eu não queria pensar nisso, mas a principal suspeita não é a Solange? Pois não a encontramos em lugar nenhum.
 — A propósito, ontem a Mica disse algo. Disse que no dia que brincamos na praia. Solomon e Solange estavam discutindo em um dos andares. E mais uma coisa, na noite passada eu fui ao banheiro durante o nosso jogo, não fui? Enquanto eu estava neste mesmo lugar a escutei conversando no telefone sobre algum passaporte, e se era possível tira-lo nessa semana.
 — Pensando bem, ela poderia estar organizando sua fuga para outro país. Mas e o quarto fechado? Nenhuma tentativa foi feita para fazer com que parecesse um suicídio. Não havia motivos para matá-lo em quarto fechado.

   De volta ao local do crime, ambas conversaram com o mordomo, que guardava a entrada do quarto.
 — Eu chamei a polícia e fui instruído a não permitir a entrada de ninguém. O tempo pode melhorar amanha à tarde, então suponho que eles cheguem por esta hora.
 — A porta ficou fechada à noite inteira?
 — Não sei, só tentei bater na porta. Solomon tem documentos relativos ao seu trabalho no quarto, então sou proibido de abrir a porta quando ele não responder.
 — Solomon e sua irmã não se relacionavam bem?
   O mordomo arregalou os olhos, espantado.
 — Eu também não sei disso. Trabalho aqui há apenas uma semana.
 — Uma semana?!
 — Eu e a empregada fomos contratados temporariamente. Nosso contrato é curto, de duas semanas nesse verão.
 — Foi só para esse resort então? Você não era empregado do Sol?
 — Isso mesmo. A respeito dos irmãos, só sei que Solange era empregada da empresa do seu irmão.

   “Tem algo errado... Harumi! Por que a saudade recíproca, se vocês nunca haviam se visto até chegarmos ao pier?”

sábado, 22 de outubro de 2011

74_ Crônicas além do mar V


O Sol Brando

   Foram todos deitar, mas as luzes não se apagaram, ninguém dormiu.
   Vararam a noite jogando cartas, desafios e contando histórias de terror a luz de uma lanterna fraca, acompanhadas com salgados e refrigerantes. Alguns desistiram da noitada. Cecília, alegando morrer de sono, foi a primeira a se deitar; Micaela e Alex deixaram o grupo logo depois e migraram para outro quarto, à procura de privacidade.
   Na ordem, Yuki, Harumi e Camilla se foram, mas não descansaram o suficiente para o próximo dia.

   Eram cerca de oito horas e o mordomo acordou a todos, um pouco pávido.
— Algum problema, senhor?
— Sim. Nossa empregada foi ao quarto da Solange, mas ela não estava lá. Também não havia sinais de que ela dormiu lá, e procura-la nos lugares costumeiros não nos levou a nada.
   Camilla estranhou.
— E que tal perguntarmos ao Solomon?
— Tentamos contatar o quarto dele pelo interfone, mas não obtivemos resposta.
— Então Solange está desaparecida e Solomon não responde as ligações?
— Resumindo, é isso que está acontecendo.
   Há essa hora, o grupo se olhou.
— Que tal entrarmos no quarto dele então? Você não tem a chave?
— O quarto do mestre é uma exceção. Ele guarda seus documentos de trabalho lá. Não temos autorização de entrar lá, e apenas ele tem a chave mestre.
   Com um leve cutucão, Harumi disse à Camilla tudo que queria dizer, mas não tinha idéia de como o fazer na frente do mordomo. Ela compreendeu.
— É melhor irmos lá ver. Harumi, Mica, Alex, venham comigo. Yuki, fique aqui com a Cecília.
   Camilla tomou a vanguarda, mas como não conhecia o hotel então estacou no primeiro corredor do terceiro andar. Como uma flecha, Harumi passou do seu lado em direção ao quarto certo.
   Quando todos chegaram, o mordomo, ofegante, tentou abrir a porta em vão. Eles nem ao menos resposta do outro lado obtiveram. Não havia idéia do que fazer, até Alex ter o brilhante pensamento.
 — Temos que arrombar.
   Consentiram com a cabeça. Ambos (ele e o mordomo) forçaram a porta três vezes com o corpo, e na quarta ela se rendeu. Com a força aplicada, todos foram parar no chão.
   Foi ao olhar para cima e para frente que o garoto realmente despencou. Na porta, as garotas tiveram a mesma vista...
   Solomon jazia no chão com uma faca fincada ao peito.    

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

73_ Crônicas além do mar IV


Royal Straight Flush

   Chovia muito lá fora e as ondas pareciam bem mais fortes do que o máximo aceitável para usarem o barco. Ninguém acordara disposto e nem mesmo o desjejum trouxe energia para encarar o dia. Solomon, por exemplo, não estava na mesa junto com os outros.
 — Meu mestre não é alguém que acorde cedo, isso é difícil. Sua ausência nesta manhã é rude, mas espero que vocês compreendam.
   Incapazes de sair, passaram o dia inteiro na sala de jogos, no subsolo. Tênis de mesa, sinuca, xadrez, dardos, pebolim e até um canto tranquilo para Harumi terminar seu livro.
 — Parece que vocês estão se divertindo.
   Solomon entrou na sala com um grande sorriso no rosto, muito típico. Solange vinha logo atrás, cumprimentou a todos e perguntou se poderia ingressar no jogo. Camilla, já de pé, ofereceu seu lugar na mesa de pôquer.
 — Estamos jogando Texas Hold’em. Temos um flush na mão, mas acho que a Micaela está blefando.
   Alguns minutos bastaram para provar que Solange sabia manipular muito bem. Ao mesmo tempo em que ela abraçou todas as fichas da mesa com um belíssimo Royal Straight Flush, seu irmão se despedia dos jovens (tinha algumas coisas a fazer). Guardou sua caderneta no bolso da camisa e caminhava em direção a saída, mas advertiu-os:
— Preciso organizar meus trabalhos, então estou indo embora. Amanha pode ser que nós joguemos outros jogos*.
   Já era tarde, então concordaram em ir para os quartos.

[* Desculpem-me se a concordância estiver errada, e novamente pela crônica tardia.]

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

72_ Crônicas além do mar III


Discussão, Declínio...

   A água cristalina e quente trouxe calma e diversão para todos: Yuki ajudava Cecília na construção de um castelo de areia, Harumi lia uma edição de Sherlock Holmes, Micaela e Alex trocavam carícias sob um guarda sol e, distante de todos, Camilla boiava acompanhando a calmaria. Todos tinham o que precisava: diversão, amigos, amados, um bom livro e um ótimo local para relaxar. Mesmo duas pessoas discutindo num dos quartos do hotel além da vista dos jovens fora facilmente.
   O jantar foi igualmente especial e todos aprovaram. Foi feito para cada tipo de gosto diferente, desde as iguarias japonesas às refeições latinas.
 — Senhor Solomon, este jantar está divino! Quem o preparou?
 — Nosso mordomo também é cozinheiro. Incrível não?
 — Gostaria de agradecê-lo.
 — Seria uma honra, minha jovem.

   Para desespero dos hospedes, o noticiário anunciava a vinda de um tufão. Harumi dizia que tempestades nessa época do ano vêm e vão sem aviso, mas não sabia informar em quantos dias ela iria embora.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

71_ Crônicas além do mar II


A Chegada À Ilha

   O mordomo e a empregada estavam no porto quando o navio chegou. O grupo desceu e foi de encontro à dupla de subordinados,
 — Prazer em vê-los, especialmente a senhorita Harumi, estávamos com saudade.
 — Igualmente. Perdoem-nos por importuná-los.
 — Não se preocupe, pois nós que devemos pedir desculpas: demorará cerca de uma hora nessa lancha para chegarmos ao hotel do meu mestre.
   Não levaram mais de trinta minutos do porto à ilha, e quando chegaram bem próximo, uma moça ajudou a amarrar a lancha ao píer. Não falou com os outros convidados, mas sorriu ao ver Harumi.
 — Essa é a irmã mais jovem do mestre, Solange, e também passará uma semana aqui. Eu já a vi uma vez antes, faz algum tempo.
 — Mas Harumi, você devia ter dito isso antes. Foi a primeira vez que ouvimos você falar de outros hóspedes.
 — Desculpem. Agora vamos lá conhecer o dono do hotel.
   Todos deram alguns passos, mas o mordomo disse que não precisavam subir até o hotel; Solomon já estava a caminho quando recebeu a notícia que os convidados haviam chegado. Mais alguns minutos e a figura de um senhor alto surgiu ao pé de uma árvore. Apesar de ser um professor de universidade, vestia uma camiseta havaiana e um shorts, nada formal para a ocasião.
 — Sejam todos bem vindos.
 — Senhor Solomon, obrigada por nos deixarem ficar aqui. Agradecemos pela oportunidade de ficar em um hotel tão magnífico!
 — Ora, você é bem diferente daquela Camilla descrita pela Harumi. Agora vamos entrar, não precisamos ficar aqui em pé o dia todo. Vocês podem pegar um quarto para cada e tomar um banho de mar antes do almoço. Só peço para que não se atrasem, e nem percam a chave do quarto.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

70_ Crônicas além do mar I

O Navio

   Camilla estava realmente interessada em levar sua priminha ao hote, porém seus tios não permitiam. Mas ao erguer a bolsa de viagem e perceber que ela estava pesada demais para algumas peças de roupas que o passaporte da garotinha se confirmou: Cecília estava dentro dela, foi então seus pais cederam. Foi difícil contar isso para a amiga , dizer que não levaria sua prima, mas foi um único sorriso que a fez desconsiderar o fato.
   A viagem até a ilha estava toda organizada, por sua vez. Harumi e sua irmã Yuki eram as responsáveis. Camilla, sua prima Cecília, Mica e seu namorado Alex eram os convidados. Todos pegariam um navio até um arquipélago, e de lá mais um barco particular, totalizando sete horas de viagem. Enquanto isso, o grupo fazia de um baralho seu passatempo predileto.
 — Camilla, eu nunca estive lá de fato, mas pesquisei sobre o hotel. Também conversei com o dono, senhor Solomon, e ele disponibilizou um mordomo e uma empregada que estarão nos esperando. Opa, eu bati! Quem perder vai pagar a bebida. Vou querer um suco de frutas.
   Agora o jogo tornou-se emocionante; Eram apenas três jogadoras, mas duas já estavam com a mão feita. Cecília foi a primeira a abaixar as cartas:
 — Quero Coca-Cola!
 — Certo Cecí. E eu vou querer um chá verde.
 — Micaela, não peça nada antes de terminar.
 — Calma, “Cacá”... Você não vai precisar ir tão longe para comprar. Temos uma máquina de refrigerantes logo ali.
   Mica não era uma pessoa necessariamente má, mas seu jeito sarcástico a incomodava algumas vezes. Ela mal havia terminado de implicar, e nossa garota já estava à procura da tal máquina.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

69_ Fio de esperança na cerração


   O seu celular tocou, e então um sorriso acanhado apareceu. Era uma amiga (aquela que a convidou para dormir em seu apartamento), e também tinha um presente para Camilla. O que precisavam fazer era se encontrar. Disse também para se preparar, e desejou muitas felicidades.
   Um fio de esperança na cerração. Mas tudo se quebra, até mesmo as pessoas que nunca se esgotam eventualmente têm um colapso. Naquela hora, a pequena caminhava de volta para casa pelo trajeto mais longo, como sempre fez quando não queria encarar a realidade. Tinha receio de chegar cedo e encontrar alguma solenidade preparada pelos seus pais, além dos possíveis mimos que sofreria, então não levaria a culpa por estar com eles. Ou pior, rostos que a acorda quando fecha os olhos; rostos que a observou toda vez que disse a verdade; rostos que riram de cada vez que ela caiu.
   Essa fobia permaneceu durante todo o percurso, e só foi se acalmar quando viu a face alegre com quem dividia a amizade recíproca. Seu pescoço ostentava um pequeno colar em formato de coração que, quando aberto, mostrava a Constelação de Gêmeos.
 — Mas é claro que eu adorei esse presente! Agora estou retribuindo! Quero que vá comigo para um hotel que eu conheci nessas férias. Vamos comemorar seu aniversário lá, longe desses que você não suporta. Prometo que, em uma semana, você voltará para casa satisfeita e com a mente curada.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

68_ Trocando de estação II


   Mesmo o final do mês assustando mais que o fim do mundo, ninguém estava realmente preocupado. E se estavam, não demonstraram ao amanhecer. Mas com o passar do tempo, seus atos mudaram, e agora as pessoas já não suportavam se encarar. Os empregos ficaram insuportaveis e o trânsito tornou-se um inferno; dar o acento para uma idosa no ônibus era tão impossível quanto ser atendido em uma fila de supermercado.
   A garota voltava para casa após um dia cansativo, porém tudo havia mudado, e uma mancha cobriu seu coração a deixando extremamente infeliz. O amor ficou dividido pelo ódio e aquela sensação de não encontrar seu caminho surgiu. A partir de então ela começou a acreditar que o mundo não tinha mais salvação. Se essa tal sociedade utópica fosse alcançável, ela não queria participar. Se fosse um sonho, gostaria de sonhar com essa vida longe dela.
   Foi descobrir mais tarde que tudo aquilo não passou de um dia normal para todos; simplesmente tinha acordado animada, mas seu vigor sumiu na medida em que voltava para casa. Começou a comparar hoje com ontem, anteontem e a semana passada, mas só encontrou defeitos neste dia.

 — Como hoje pôde ser um dia tão ruim de se viver?

   Não era um dia normal para ela, nem especial aos desconhecidos. Era simplesmente seu aniversário.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

67_ Trocando de estação I


   Camilla estava a caminho da escola, mas parou para observar as pessoas (nessa cena de teatro ela joga o protagonista, mas também o oposto) procurando por mais do que os olhos podem ver, para acreditar em alguma coisa. Não via as pessoas de cima, e muito menos de baixo, mas se as conhecesse, talvez pudesse crer nelas. Era difícil de dizer o que chamou sua atenção, mas todos levantaram bem cedo, e igualmente dispostos. Apresentavam um sorriso decente e as mais simpáticas atitudes: davam passagem, pediam licença e até se desculpavam!
   Estranho. Tudo estava perfeito demais, mesmo com essa sociedade utópica não passando de sonhos e teorias...

[Prometo que o próximo capítulo fará sentido.]

sábado, 1 de outubro de 2011

66_ O mal da adolescência


   Suas novas tatuagens são de caneta preta. Seus vícios são os chocolates. A heroína é sua mãe; o crack, seu pai... Seus momentos “mal acompanhados” são geralmente com amigos. A sua prisão é o quarto peculiar e a maior pena, o próprio castigo.
   Do quarto, Camilla migrou à sala, depois ao jardim, onde deitou na relva verde e lá ficou por alguns instantes. Todos viam uma garota jogada ali, mas ninguém escutava seus mais profundos suspiros. Ela queria simplesmente ser uma criança novamente, mas não no sentido assustador; queria brincar com suas amigas de infância e jogar vídeo game, sem se preocupar por estar desperdiçando sua vida, mesmo com os dias parecendo longos... Agora ela convive com os ecos atrás da sua cabeça, dizendo sempre as mesmas palavras: cresça, e amadureça.

   Foi um lindo sonho, ela só estava se lembrando errado.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

65_ Escondida da luz do dia


[Àquelas pessoas que nunca ouviram falar de maldição, nem nunca viram um milagre. Para aqueles que nunca choraram sozinhos num quarto sujo, nem nunca quiseram ver a face de Deus.]

   Amanheceu...
   A luz que passou por entre as barras da janela, iluminou o quarto e escureceu sua mente estava longe de acabar. Ninguém sabe que ela havia se deitado à noite com o desejo, a esperança de nunca mais despertar; já hoje de manhã, ao acordar e sol acariciar-lhe a pele, Camilla sentiu-se infeliz.
    Ela queria pôr a culpa no tempo, numa terceira pessoa, e assim o fardo insuportável de contrariedade e irritação não pesaria tanto. Mas sabe perfeitamente que a culpa é apenas sua – não, não é bem culpa, mas sabe que em seu íntimo está a fonte de toda desdita, assim como outrora lá se encontrava a fonte de toda felicidade.

    Exausta e desanimada, sem esperar ser respondida, sua voz foi dirigida às paredes, mas olhando para o chão:
 — Não sou mais a pessoa que pirava na plenitude dos sentimentos, que a cada passo encontrava um paraíso, que possuía um coração capaz de abraçar amorosamente um mundo inteiro?

   Mas esse coração agora está confuso e frio. Dele brotam arrebatamento de outros tempos. Seus olhos estão molhados agora, e os sentidos banhados pelas lágrimas. A garota sofre muito, pois perdeu a única coisa que dava encanto à vida: a força revitalizadora com qual ela girava mundos em torno de si...

   Amanheceu, mas não durou mais que um dia.

sábado, 24 de setembro de 2011

64_ O pequeno príncipe


   Sentado nas escadas, de frente para um grande restaurante, um garotinho assistia a uma cena de teatro sem ter entrado num: uma única mulher ajudava vários rapazes bêbados a ficarem em pé. Ao mesmo tempo, sentia pena e aversão dos mais velhos, sem vontade nenhuma de ocupar seus lugares. Já sabia que aquela garrafa que eles carregavam não trazia felicidade.

   Era um garoto muito magro com roupas rasgadas nos cotovelos e joelhos. Um par de sapatos lhe dava proteção contra o piso frio, mas as meias eram ausentes. O gorro cobria boa parte do seu cabelo liso e os olhos se tornavam tão vivos sob a luz das lâmpadas que eram facilmente notados a uma grande distância.
Mas algumas vezes a vida tinha sido má, e logo cedo ele viu sua mãe falecer por causas naturais. Sabia que tinha que seguir em frente, embora doesse ser forte.
   Mas outras vezes a vida também foi injusta, e tão jovem se tornou órfão. Foi então mandado para um albergue, e de lá fugiu inúmeras vezes para lugares distintos; todas essas vezes que trocava de teto, ouvia a si mesmo dizendo que tudo estava bem, e que a paz estava chegando. Foi preso por roubar alimento, mas neste instante apenas observava uma festa e seus convidados.
   Feliz, ria agora como se devia ter rido nos seus poucos anos de vida. Levantou-se e caminhou em direção a garota. Não tinha o que dizer e quanto mais se aproximava dela, mais corado ficava.
 — Com licença moça. Você é muito bonita...
 — Ah, obrigada.
 — ...Mas porque está aqui no frio?
 — Só vim para curtir a noite, esquecer alguns problemas. E você?
 — Bom... Digamos que eu também...
 — Mas você é muito novo, seus pais não vão ficar preocupados?
 — Quando eu chegar a casa, converso com eles. Mas e os seus?

   Dias depois, Camilla descobriu quem era aquele garoto que conheceu naquela noite. Procurou por ele várias noites seguidas, mas ninguém chegou a vê-lo após a festa. Talvez o pior já houvesse acontecido, mas, após tudo que havia acontecido a ele, começou a acreditar que não tinha coisa pior para acontecer.



[Dedicado à amiga Priscila Pereira Caforio. Perdoe-me pela delonga.]

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

63_ Festa estranha, gente esquisita


   A música alta e de péssima qualidade embalava várias pessoas que ela não conhecia, todas sob efeito de bebidas quentes e com gosto ruim: todos os fatores a favor para uma péssima noite. As luzes causavam um efeito devastador: apagavam e acendiam... Apagavam e acendiam novamente, e infinitamente.
   A freqüência de disparo da luz era altíssima. Isso era comum aos outros convidados, menos para Camilla, que sofria num canto. Era como se fossem fotos, e caminhar no meio da multidão guiada apenas pela memória de milésimos de segundos atrás se tornou desnorteante. Além disso, precisava calcular com exatidão o movimento que as pessoas iam descrever durante um flash e outro, Não era desgastante nem difícil, porém ninguém pula em uma única direção numa festa...
   Toda essa física a enjoou. Tirou um tempo do lado de fora, e junto vieram seus mais novos amigos fazer companhia. Nesse instante, um pouco de responsabilidade pairou sobre seus ombros:
 — Pronto, agora sou obrigada a carregá-los bêbados para casa. Não vou dar banho em ninguém, me escutaram?

   Nem olharam para o rosto do mais novo patrono, e já estavam com a boca nos gargalos das garrafas.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

62_ Inadaptação


   Precisava urgentemente apagar a mácula que surgiu meses atrás. Poderia se perder nos vícios da vida; andar pelo caminho errado, mas nada disso aconteceu (não com essa simplicidade): abriu a mente para outras pessoas e começou a sair com os vizinhos e amigos nos fins de semana. De longe, Camilla era a mais correta do grupo: suas privações não permitiam que seu caráter mudasse. Como resposta, um óbice imposto pelos mais velhos deixava a jovem restrita a certas atividades e lugares.
   Deixou seus princípios de lado e tentou o máximo que pode; a única coisa que queria era adaptar-se aos outros. Ela queria que eles fossem seus amigos, e ela faria tudo o que pedissem. Para ganhar um sorriso, faria coisas talvez erradas, mas a todo tempo eles debochavam... Então ela se isolou novamente por achar que ninguém gostava dela.

 — Deixa disso Cá! Vá se arrumar, hoje tem festa.

   Quem disse isso foi uma das mais novas iniciadas naquela turma. Ela esteve um pouco perdida também, mas melhorou. Ficou grávida.
   Finalmente ganhou o que queria: alguém para amar. Mas um dia ela acordou péssima; o seu corpo queria lhe dizer algo e soube imediatamente.
   Então começou a chorar, pois não seria mais mãe.

domingo, 18 de setembro de 2011

61_ Os picos afogados


II Livro

   [A tensão entre ela e o diário chegou ao limite e as divergências não conseguiam ser mais ignoradas. Ao tempo em que ele queria ajudar, Camilla percebeu a única razão por qual seu amigo ainda existia: aliviar sua dor, dialogando e guiando-a, com e ele conhecendo as intenções e as poucas ambições da jovem. Porém sua última orientação não foi proclamada, e no lugar dela, ficou apenas um suspiro. A garota não percebeu isso, mas seu consciente apontou a denúncia custosa. Seu preço... o único amigo que lhe restava.]

Acerca de cinco meses depois.

   Abriu sua mente para todos aqueles que ela conhecia, amando sem dúvida, ao mesmo tempo em que se isolou pessoalmente. Complicou seus inimigos, embaraçou seus amigos e todos aqueles que foram injustos.
   Camilla tornou-se uma garota fiel ao seu coração, sem desconfiança ou medo algum de errar. Usava calças rasgadas e camiseta de banda; tattou “insegurança” em seu corpo. A partir da própria perda, virou a primeira a entender as situações impostas e a última a desistir... Aceitou tudo, sem esperar nada em troca.
   Roubou corações com toda graça e genialidade. Conquistou uma vida e assim distribuiu entusiasmo, mas não sobrou tempo nem espaço para ela mesmo crescer e envelhecer.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

60_ O mártir e a inquisição


   Relógios quebrados deixaram de marcar as horas. Mãos calejadas de socar a parede não se moviam mais.
   De um lado do quarto, encostada na parede, uma jovem com a consciência de mil pecadores e a cabeça baixa. Na sua frente, sua vítima agonizando em silêncio; a tinta volátil escorria de suas páginas até o tapete e evaporava deixando para trás uma fumaça escura, tão densa quanto a mente de sua antiga dona.
   A garota, sem medo algum, nem lágrimas nos olhos, tinha apenas tempo para tomar fôlego, e fracassou em respirar.
   Essa culpa a dominou e comprimiu seu peito. A confusão a deixou cega (mentalmente e fisicamente) e assim, a jovem conseguia ver algo realmente único, como uma estrela brilhante pela noite afora, mas isso não passava de uma esperança boba de estar com a cabeça sã. Seus olhos procuraram em vão apenas o que estava por traz dessa cega noção, que várias vezes enganou a cabeça dela. Seu amigo, se ainda existisse, diria que há quem chame isso de estupidez, mas como o amor ou ódio, sua culpa é falsa ou verdadeira? Mas quem, com íntegro escrúpulo, já ouviu um ser sucumbido falar?

   Depois de tanto olhar para a pilha de folhas manchadas sem achar explicação, Camilla olhou para cima, olhou para as paredes, através da janela, como se fosse encarar aquele que lhe deu a voz um dia, que a fez chorar e sorrir, que emprestou sua vida e a tomaria uma noite qualquer, sem aviso prévio. Talvez na mesma noite que estivesse deitada em sua cama sem fazer absolutamente nada.
 — Quem é você para fazer da sua onipotência o direito de decidir o meu destino?

terça-feira, 13 de setembro de 2011

59_ Abraço eterno, juízo soturno


   Um amplexo perpétuo, mas algo estava fincado na mente da jovem.
   O quarto começou a girar à medida que ele era apertado contra o corpo dela e num instante, todas as idéias que vinha à cabeça trazia algo ruim. Nada nunca pára esses pensamentos nem a dor que eles trazem. Às vezes, Camilla tentava descobrir a origem deles, mas não encontrava nada a não ser mais sofrimento.

   “Escrotinha mimada...”
   “Aptidão enganada...”

   Camilla parou para descobrir por que isso estava acontecendo: é como se nada que ela possa fazer a distrairá quando pensar em como enganou seu melhor amigo com promessas findáveis. De todas as palavras infinitas que poderia dizer, ela apenas colocou toda a dor em exposição. Não percebeu que, ao invés de libertar-se, pegou tudo que odiava de si mesma e... Não fez nada, pelo contrário: viu aquele ser horrível segurando um livro sórdido e identificou-se com ele. Esse monstro sempre esteve ali, sempre será o seu maior medo, pois ela nunca conseguirá separar ela mesma de tudo que havia feito com ele. Cedeu uma parte de si, e deixou-se criar garras e presas.
   Escutou seu nome e as memórias voltaram novamente. Lembrou de quando isso tudo se solidificou. Viu nessas lembranças cada pensamento que teve, acompanhado de suas palavras contadas...

   “Rascunho vazio.."
   “Ego satisfeito...”

   Não por instinto, mas por fraqueza, Camilla largou seu melhor amigo e escorou-se na parede. Não conseguia ver mais o assoalho do quarto, a cama não estava mais lá e a escuridão invadia o cômodo através da janela trancada.
   O diário, por sua vez, caiu inerte no chão.

domingo, 11 de setembro de 2011

58_ Saudades e memórias


   Gotas riscavam daquele lado da janela e a melancolia podia ser sentida, e até mesmo tocada por ali. Havia o que fazer nessa noite, mas faltava-lhe ânimo e vontade (alem da coragem de sair de casa).
   Uma nova tempestade chegou nesse fim de semana e muitos poucos se aventuravam na garoa de inverno; capas e guarda chuvas eram proteções inúteis, talvez por serem individuais.
 Decidiu então ficar e conversar:

Camilla: Querido Diário...

   Um começo falho. Incrivelmente, seus inícios de conversas não eram difíceis, mas nesses dias, toda tarefa e toda atividade tornaram-se mais complexas que o comum (até mesmo abrir um velho livro e sujá-lo com tinta de alguma cor).

Diário: Espero que o mundo mude, e que a situação melhore, mas o que mais quero é que você entenda, quando digo que ainda que eu não te conheça, apesar de talvez jamais encontrar você novamente, rir com você de novo, chorar com você ou beijar você mais uma vez, eu te amo de todo coração, eu te amo.
Camilla: Como sabe o que estou passando, Diário?
Diário: Eu poderia ler seus pensamentos e te dizer o que você viu, mas nunca dizer uma palavra. Não é apenas lá fora que chove, mas dentro da sua cabeça vive uma tempestade.
Camilla: Eu quero voltar a fita até o dia quando a simplicidade foi lavada. Há um desejo silencioso de deixar esta nuvem quando tudo que eu quero é ouvir o som da voz destituída do barulho constante, o único som para preencher esse vazio.
Diário: Minha jovem, não há nada que eu posso fazer a não ser tentar te consolar em meus braços...

   Ele ainda tinha o que dizer, mas ela a abraçou com força.
   Diria que ela sofreria menos se não tivesse quem perder, mas o afago fez com que ele perdesse o fôlego.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

57_ Apenas mais um dia de inverno


Uma semana depois.

   Nublado, frio e garoando. Esse era o clima do lado de fora de casa quando ambos, Camilla e seu pai, chegaram do hospital. Poderiam sair em dias distintos, mas, como boa filha, esperou até ele receber alta. “Foi uma atitude honrosa, minha jovem” diziam amigos, enfermeiros e médicos, menos o próprio genitor.
   Dentro do lar, tudo era tão diferente que ela levaria um tempo a se acostumar com a nova rotina. Por enquanto, deveria esquecer o que aconteceu nos últimos dias, e uma festa de boas vindas. Vizinhos e familiares foram convidados, mas pouquíssimos foram. Nada disso machucou mais do que sentir a falsidade no ar: apenas alguns por parte da família realmente se importavam com o estado de saúde dela; um dia ou um mês a mais no hospital, sob efeitos de medicamentos fortes ou tratamentos intensivos, isso tudo não fazia diferença para a grande maioria daquela festa... Se estivesse realmente mal, quem se importaria seria apenas uma prima ausente ou...
   Cumprimentou cada um que ali estava.
   Agradeceu a visita de todos.
   Subiu para o quarto com os olhos marejados.

 — Filha? O que houve?
 — Nada de mais, mãe. É essa chuva do lado de fora.

   Tentou contornar a situação. Mesmo que ela não caísse, teria tempo até pensar em outro assunto para distrair o interesse da mãe.
 — Só a chuva mãe...
 — O que tem ela?
 — Não sei bem, mas ela me deixa triste. É muito melancólico.
 — Bem, não sei como você se sente, mas se isso te alegra, a chuva também me altera.
 — E como?
 — Me deixa ensopada.

domingo, 4 de setembro de 2011

56_ Meio termo


   A jovem deu entrada às onze horas no mesmo local que seu pai foi hospitalizado. Ao lado da maca estava o médico da família (um senhor grisalho de óculos, estava muito preocupado com a garota, e mais ainda se o caso chegasse ao ouvido do senhor Saentinni), sua amiga e alguns enfermeiros que auxiliaram no transporte.
   Mas apesar da presença de todos ali, apesar do lugar cheio, Camilla conseguia enxergar apenas a figura dela mesma mais jovem, “a sabedoria inacessível”. Um momento visto através daqueles olhos, disfarçados de cinza cristal:
 — Tanto para ver esta noite, Camilla, então por que você fecharia os olhos?
 — Por que eu não posso fechar os meus?
 — Ah, você deve estar fora de si agora, mas um dia você encontrará a sanidade que nos deixou cegas, e nos arrastou para trás.
 — Eu consigo ver as imagens claras como ontem, imagens de mim mesma.
 — Consegue ouvir as vozes implorando pra você ficar?

   O tempo continua passando, mas ela parecia congelada; cicatrizes serão deixadas para trás, mas algumas muito profundas para se sentir. Tinha medo do desconhecido, e a partir de então, medo da própria mente. Estimulada, meio acordada, precisava acabar com essa dor dentro da própria cabeça, pois ela está rindo dela.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

55_ O vale das cinzas


   "Enquanto tudo acontecia dentro da minha mente, o mundo continuava a girar, assim como a cabeça da amiga anfitriã, que acordou tarde, e com uma imensa ressaca. Sentou-se ao meu lado e ainda tonta, tentou me acordar em vão:
 — Acorda Bela Adormecida. Minha cabeça ta me matando, e já são duas da tarde. Vou tomar um banho, e quem sabe se melhora?

   Um banho aliviaria o mal-estar causado pela bebedeira dela. Mas não curaria todos os sonhos ruins eu tive, causados pelo comprimido.
   Enquanto isso...
   No vale das diferenças o pó começa a cair, até o chão. O ar está frio e delicado. Tudo começou a ruir: quem me trouxe até este lugar não está mais no local; Ninguém não estava lá, e Todo-o-Mundo desapareceu.
   Mas o próximo movimento já foi arquitetado antes das ruínas se concretizarem (eu entendi o ritmo, mas a destruição está devagar). Estou sozinha agora, eu e tudo que aprendi comigo mesma. E agora nós estamos vagando sem rumo agora, tudo em partes... Em pedaços... Caminhando sozinha, e assim vamos até encontrar nossa própria saída.
   Me lembro de chegar numa planície bem verde, longe das cinzas que caiam do céu. Um rio cruzava meu caminho, mas esse foi vencido facilmente. (Eis meu primeiro desafio?)
   Havia uma garota na beira do rio com ambas as pernas dentro dele. Se divertia demais para estar sozinha no meio do nada, ou no meio das minhas memórias, mas o que mais me assustou foi ver eu mesma, porém mais jovem, sentada ali.
 — Às vezes a vida não te deixa sozinha, Camilla?
 — Então você é... Eu, porém, jovem?
 — Não exatamente. Sou a sabedoria que você não terá quando envelhecer.
 — Então quando tudo estiver perdido, assim como eu mais velha, existirá você?
 — Infelizmente não, porque para o universo, você me criou sem valor.
 — E por qual motivo eu ainda estou aqui?
 — Há algo de errado. Por que você não pode sentir chamando seu nome? Você conseguiu quebrar o silêncio, e isto está nos quebrando agora. Percebe como tudo vai ficando mais frio?"

 — Camilla, acorda! Você está suando!!
 — Eu... trouxe um presente... para você...

domingo, 28 de agosto de 2011

54_ O córtex dissonante II


Assim, dois homens vestido de maneiras distintas chegaram à encruzilhada. Um deles, aparentemente perdido, se chamava Todo-o-Mundo. O outro bem pobre (mas de cabeça erguida, o que me impressionou muito) se chamava Ninguém. Passaram-se alguns instantes até começarem a conversar, e minha condutora, em silêncio, esticou a mão com uma pena e um pedaço de pano amarelado.

Ninguém: O que anda procurando amigo?
Todo-o-Mundo: Busco dinheiro, gastando meu tempo inteiro.
Ninguém: E eu me chamo Ninguém e busco a consciência. Outro bem maior que esse?
Todo-o-Mundo: Busco quem me adorasse por tudo que eu fizesse.
Ninguém: E eu quem me repreendesse em cada coisa que errasse. E agora, o que busca aqui?
Todo-o-Mundo: Busco honra muito grande.
Ninguém: E eu quero apenas virtude.
Todo-o-Mundo: Também procuro muito o paraíso.
Ninguém: E eu ponho-me a pagar pelo quanto devo para isso.


CAMILLA, QUE ISSO LHE SIRVA DE EXPERIÊNCIA: TODO-O-MUNDO BUSCA DINHEIRO, ENQUANTO NINGUÉM A CONSCIÊNCIA.
            O que mais devo anotar?
O QUE JÁ DEVIA TER APRENDIDO: TODO-O-MUNDO QUER SER LOUVADO, ENQUANTO NINGUÉM SER REPREENDIDO.
            O que mais escreverei?
A LIÇÃO DA JUVENTUDE: TODO-O-MUNDO PROCURA HONRA, E NINGUÉM PROCURA POR VIRTUDE.
            Mais algo?
SEREI BREVE: ESCREVE QUE TODO-O-MUNDO QUER PARAÍSO, E NINGUÉM PAGA O QUE DEVE.

   E foi dessa forma que eu aprendi, mais tarde, que não sou ninguém, e muito menos me comparo a todas as outras pessoas do mundo.
   Pelo contrário, nunca busquei nada, e se eu perder algo hoje, não sentirei falta de imediato."