"E tu, bondosa alma, que te sentes tão angustiada como ela...
Consola-te com os seus sofrimentos, e permite que esta pequena personagem se torne sua amiga
(com todo vosso zelo e compaixão) que, por destino ou culpa própria, não tiveres outro mais próximo.
Não poderei recusar vossa admiração e amor para essa alma, nem ao seu caráter.
E com lágrimas, acompanhe o seu destino."

Sofrimentos do Jovem Werther (Primeiro Livro) - Goethe

quinta-feira, 30 de junho de 2011

32_ Hipotermia subaguda II

   Ela tinha um problema mesmo não podendo contar a ninguém. Tinha também habilidade e experiência em ficar calada, mesmo com tantas dúvidas geradas ao longo dos anos de angústia e solidão. Com tudo isso, não é fácil apontar algo e dizer “eis a razão de tantos sentimentos e tantas lágrimas!” Cansada ou satisfeita, fria ou pálida, o fato dela se perguntar qual o motivo disso tudo e correr atrás de respostas só destaca a vida inevitável que ela carrega (ou como queria, “a vida que lhe carregasse”).
   Mas de uma coisa Camilla tinha certeza: essa palhaçada com sua pessoa estavam prestes a acabar, e se fosse preciso, tiraria isso a força da sua vida (ou “tiraria a força da sua vida”, ou ainda, “a vida a força”...)
   Sentimentos pessimistas e atitudes arriscadas... Como diziam falar dela, mas não falar a ela: “Camilla flerta com o suicídio”. No começo não se importava de fato. “Isso só mata a dor”, ela defendia, mas sabia que no fundo, acabara elevando a dor. Só não sabia que tudo isso ia acabar tão cedo.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

31_ Hipotermia subaguda I

   Eu os irritei de algum jeito, e foi ai que as coisas começaram a mudar...

   Parece que eu sempre vou fazer tudo sozinha. Possível que eu até pudesse precisar de alguma ajuda, mas como dizem: “se você quer algo bem feito, faça você mesmo.” Talvez a vida seja feita de altos e baixos, mas minha vida está sendo o que até agora?
   Eu costumava ser energética e agora tudo está inerte. A linha tênue que separa o simples do complicado, o branco do preto, sumiu, e desde então tudo se tornou cinza e frágil. Infelizmente, quando algumas coisas se tornam estúpidas, é ai que nós colocamos os pés no chão.
   Diário, você ainda questiona se não há como voltar atrás e impedir toda essa mágoa de vir à tona? Sim, se talvez eu não existisse. Minhas veias já estão congeladas, e meu coração frio não quer mais bater.

   Cansei disso. Vou andar pela noite... Quem sabe se quando eu voltar, as coisas não estarão melhores?

segunda-feira, 27 de junho de 2011

30_ (Des)equilíbrio urbano

   “Talvez haja mais vida do que tudo isso pareça oferecer enquanto nós fugimos constantemente da realidade amarga... Caçando sonhos, desviando de pesadelos... Mas Diário, o que nós não acreditamos é o qual rápido nós possamos perder nossas esperanças de dias melhores. Enquanto tudo isso acaba roubando o melhor de mim, eu não suporto a facilidade de como posso ser testada tão intensamente (e assediada mentalmente), mas eu não sinto nada de mais, nada novo ou algo fora do normal, a não ser meus desejos obsessivos de fugir dessa realidade que só me oferece estresse, humilhações e algumas memórias, sem espaço para conforto.
   Sim, essa é a causa da minha desilusão, meu estado temperamental e psicótico, alucinado e desequilibrado... Ou simplesmente incompreendido. A sua sorte, Querido Diário, é que nós somos tão diferentes, mesmo sendo tão próximos. Você me disse uma vez que a vida é uma magnificência. Agora eu lhe pergunto: há tanta glória para uma única pessoa? Se houver, vá aproveitar a sua noite. Eu estou indo dormir.
   Boa noite.”

   As últimas luzes da cidade se apagaram e ambos ficariam quietos até o nascer do sol. Ele queria que fosse assim. Ela desejava permanecer em silêncio perpétuo.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

29_ Felicidade clandestina

   A fadiga veio à tona junto com o sono e dores de cabeça. Durante toda a semana, a jovem havia sufocado os medos e se focada a um único objetivo, que com o passar do tempo, se tornou algo inatingível independente de seus esforços. Descobriu sozinha que os obstáculos que atrapalhou seu caminho eram fatores isolados causados por ela mesma: renunciava de suas decisões por causa de um enorme temor que aparecia nas últimas horas; não analisava as consequências de suas opções; nem ao menos se dava o luxo de perguntar como poderia ser se houvesse escolhido outro caminho.
   Não que fosse parecida, mas até mesmo a vida de Dom Quixote seria insuportável se esse não contasse com a companhia do seu fiel escudeiro, Sancho Pança. E essa é a sorte da pobre Camilla, ser acompanhada em sua trajetória por um amigo também fiel (talvez o único). O seu diário, ou como gostava de ser chamado, Querido Diário, era sempre presente com sua literatura formal. Eis o leal escudeiro da nossa heroína.
   Estava feliz em tê-lo como companheiro, mesmo sem dar a atenção suficiente. Ele por sua vez, a entendia como ela merecia, e por isso, nunca, ou quase nunca, discutia por causas inúteis. Pelo contrário, estava sempre dando conselhos de quando e como agir. Por esse motivo, Camilla ainda continuava em pé com a possibilidade de desistir de tudo minimizada.
   Suas atitudes haviam amadurecido e seus pensamentos não eram os mesmos. Sim, ainda que fosse difícil isso acontecer, ela ainda podia jogar tudo para o alto e ir dormir mais cedo.
   Como uma grande mestra dizia: “Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.”

quinta-feira, 23 de junho de 2011

28_ Incerteza etérea

   Os dias passariam para sempre, mas ela não deixaria de estar ao lado do pai. Cercados por paredes brancas. Mas agora ela está vazia. Pensamentos absurdos invadiam sua mente ao mesmo tempo em que o clima frio das ruas atravessava sua alma.
Camilla: Será que o céu está a caminho?
Diário: Não pense nisso... Alguém pode te escutar.
Camilla: Mas já estou cheia! Todos dizendo que ele está bem. E se não estiver? E se eles estivessem mentindo?
Diário: Aprecio o fato de você ser uma crente, alguém que acredita em tudo, mas nada pode ser pior que amigos imaginários. Acredite em mim pelo menos: seu pai está na mão de anjos.

   Anjos? Seriam aves de uma pena só? Ou isso tudo não se passa de mentiras e asas curvadas? Esperançosa com sempre, mas ainda desamparada, Camilla vivia por aqueles que ela perdeu no caminho. Talvez sua família estivesse sofrendo, mas a jovem não se lembra quando tudo isso começou a quebrar, mas procuraria respostas para o que eles sabiam o tempo todo.
   Sem poder deixar a cidade agora, nem que fosse por um tempo, decidiu voltar para casa, e retornar ao hospital na próxima semana. Ela sabia que era o certo, mas parecia tão errado. Pra variar, sentiu-se confusa. Túrbida de novo, e novamente. Ao mesmo tempo em que caminhava em direção a casa, sua cabeça estava voltando ao quarto do pai.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

27_ Dia de visita II

   Ajoelhada ao lado da cama estava a pequena garota. O médico não tinha escolha, sabia o que tinha que ser feito. Mas quem disse que ele faria isso?
— Rezando por ele?

   Sem reação, ela apenas se virou pronta para receber a bronca.
    Mas o doutor não fez nada alem de cumprimentá-la.
— Deixe me adivinhar... Camilla? Camilla Saentinni?  

   Concordou com a cabeça.
— Estou feliz em finalmente conhecê-la, já que seu pai vive falando de você. Veio dar seu apoio ao Sr. Saentinni?
— Vim fazer companhia, conversar um pouco e ver como é seu estado, mas agora ele está descansando. Acho que já devo ir.
— A segurança está em alerta. Eles viram uma mulher sem permissão perambulando pelo saguão. Não creio que vão fazer algo, mas para garantir, espere um instante aqui. Quem sabe se o seu pai não acorda agora?

   Era uma boa idéia, mas talvez não estivesse preparada para isso. Sentia-se na pele de uma foragida, mas estava realmente focada em conversar com o pai. Esperaria a noite toda, se ninguém estivesse atrás dela.
   Alguns minutos se passaram e alguém bateu na porta.
— Doutor? O senhor pode abrir a porta?

De dentro do quarto, o médico, pálido, tentou acalmar Camilla e resolver a situação.
— Poderia, mas o Sr. Saentinni está em repouso. Não seria certo se alguém perturbá-lo agora. Você não pode voltar mais tarde?
— Posso, mas a diretoria me enviou agora. Vimos uma mulher caminhando pelo prédio sem autorização e fui encarregado de procurá-la.
— Entendo. Deixe-me agasalha-lo, já estava pronto para aplicar a injeção, mas creio que ele pode esperar alguns minutos pelo seu tratamento. Só não conte a ninguém que eu fiz isso, pois meu emprego está em jogo agora.

   Por um momento, um silêncio tomou conta do cômodo, quebrado pelo guarda:
— Ferrou... Bem, doutor? Posso voltar aqui depois?
— À vontade.

   Era sua deixa. Camilla pegou sua bolsa, despediu-se do pai e fugiu pela varanda que dava acesso ao quarto vizinho. Desceu as escadas em direção à lavanderia dos fundos, como foi informada pelo médico, à procura da responsável pelo setor. Alguns minutos depois, estava no estacionamento do hospital em direção ao ponto de táxi. Mesmo sem conseguir conversar com seu pai, estava alegre em poder vê-lo. Quando entrou no veículo, ligou direto ao médico e pediu a ele para não contar ao pai sobre a visita, por algum motivo pessoal.
— Claro Camilla, como queira.

   Enquanto isso, num quarto qualquer do segundo andar, um senhor de meia idade pergunta o que havia acontecido enquanto descansava. Após o esclarecimento do médico, pede autorização para usar o telefone:
— Querida? A nossa filha está em casa? (...) Saiu faz muito tempo? Não, não... Está tudo certo, só queria saber como ela estava...

terça-feira, 21 de junho de 2011

26_ Dia de visita I

   Quem a via caminhando na rua enxergava uma garota meio vazia. Mesmo se sentindo quase cheia, Camilla estava bem. Ou pelo menos fingia estar (e o fazia muito bem).
   Enquanto ela se aproximava do destino, mais se aproximava de um colapso. Mais tranqüila que uma batida de coração que nivela veias, quieta como uma rua escura debaixo do luar e mais suave que o sorriso de um bebê, isso vai passar.
   Entrou exaltada, empenhou para dizer algo à recepcionista, mas quase nenhuma palavra soou certa. Tentou mais uma vez, e a mulher só conseguiu escutar murmúrios molhados.
— Meu... pai...
— Ah, então você é a filha do senhor Saentinni? Ele sempre fala de uma garotinha com um livro antigo de baixo do braço.
— Ele já está melhor?
— Sim, ele está se recuperando bem. Pelo visto, você veio visitá-lo, certo?
— Gostaria de lhe fazer companhia nessa tarde.
— Desculpe-me, mas o próximo horário de visitas começa daqui a duas horas.
— Eu entendo. Posso voltar outro dia então.
— Olha, não é o certo, mas há certos casos em que um ou outro escapam pela vigilância e vão perambular por aí. Só não deixe os seguranças te pegarem. Ele está no segundo andar, quarto 225.

   Seria totalmente impossível ela passar pelo saguão, se não caminhasse por entre as pessoas e não fosse percebida. Essa, a maldição dos ignorados, a salvou mais uma vez e abriu caminho até o leito. Agora a maior dificuldade era fazer uma única escolha. Isso não é necessariamente um dilema. Era mais um conflito interno, pois mesmo sem permissão para estar naquele local, sempre foi orientada a bater na porta antes de entrar. Fechou os olhos e levemente, acertou a porta duas vezes, como se fosse ser perdoada por invadir as dependências do hospital.
   Seu pai parecia estar descansando na cama, mesmo respirando com ajuda de aparelhos. Segundo a recepcionista, o quadro dele havia melhorado e não conseguia imaginar o seu estado ao entrar no prédio. Não podia fazer muito, então Camilla apenas se ajoelhou do lado do pai, desejando melhoras.
   Nesse instante, o médico da família havia entrado pela porta. Não queria atrapalhar, de jeito nenhum, mas conhecia as regras do hospital: não era permitida a circulação de pessoas fora do horário de visitas.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

25_ Passeio de metrô

   É sempre divertido andar de metrô, não sei bem o porquê, mas convenhamos que seja divertido mesmo assim.
   Sonhei que estava sozinha, sentada com os óculos quebrados, o que significa que minhas cicatrizes estão me seguindo através do túnel em um trem de Paris, emergindo na chuva de Londres, após nadar em meio as desculpas. Tinha um soldado em pé perto de mim. Ele estava procurando pelas palavras perfeitas, e eu só esperando que o trilho chegasse ao fim. Eis a diferença entre nós: ele procura como enfrentar seu destino, enquanto eu tento fugir, sem deixar de lado a vontade de o fim chegar logo. Essa é a discórdia entre nós, que ficou mais clara quando ele pisou no meu pé com aquele coturno tinto, sem se dar o luxo de pedir desculpas. 
   Virei o rosto. Algo tão banal assim não podia acabar com minha viagem. Mas só de olhar a paisagem pela janela, o incômodo havia passado; as casinhas humildes na montanha e as poucas árvores na planície me distraíram, e a sensação de um cotidiano despreocupado me fez lembrar de uma carta escrita a mão. Suas letras riscadas com carinho e o "Eu sempre te amarei" encheu meus olhos. Lembrei também da noite onde nós andamos ao longo da metrópole indo assistir algum filme no cinema.
    Senti a recordação me dominar, e ao mesmo tempo o soldado virou e então se afastou. “Dane-se por existir, mal-educado! Só quero andar de metrô.”

domingo, 19 de junho de 2011

24_ Viagem à cidade

   "Eu só queria andar pela cidade cinza, rodeada por muros pichados e sob o céu nublado, com minha bagagem em mãos. Nela, tudo que eu realmente preciso: nada. Pode parecer estranho Diário, mas não existe muito que eu possa levar à lugar algum.
   Creio que a essa hora da tarde eu sou a única entre muitos que se encontra olhando para o alto, assistindo ao fim do dia e perguntando “até quando tudo isso vai durar?”.
   Sim, é algo patético, mas essa situação não sai da mente de todos. Uma ocasião impossível, e eu começo a acreditar que isso seja o que eu venho tentando alcançar já faz um tempo. Mas isso não foi e nem é problema, uma vida de desculpas julgando cada ato, me fazendo esquecer de como falar e formular todas as perguntas. Eu até fugiria essa noite com a minha mente ainda intacta, mas tenho que deixar tudo como deve ser. Claro, é mais fácil falado do que fazer, principalmente quando não tem nenhum lugar para se esconder ou nenhum lugar para onde correr. Se não tivermos esperança, como nós nos suportaríamos?
   Diário, uma grande amiga disse-me uma vez que nós somos nossas próprias memórias e sem isso, não existiríamos. E agora, tudo que eu posso pedir é um lugar em que eu quero morar eternamente e desejar que a minha vida fosse assim livre... Folhas em meus pés unidos a terra; ecos da floresta alcançando meus ouvidos. Noites chegando rapidamente; sóis se pondo rapidamente. Mas acredito que isso só exista nos meus sonhos."

sexta-feira, 17 de junho de 2011

23_ Querida agonia

   — Eu não tenho nada para dar mas achei o fim perfeito pois você foi feita para machucar. Então Desapareça em meio à poeira mas leve-me aos braços do céu, ilumine o caminho e me deixe ir. Leve o tempo, leve minha respiração, eu vou terminar onde eu comecei. Eu vou encontrar o inimigo, porque eu posso senti-lo rastejando sob minha pele. Querida Agonia me deixe ir sofrer lentamente, mas tem que ser desse jeito? Não me enterre por que estou tão arrependida.


   De repente as luzes se apagaram e o sofrimento a deixou por enquanto. Iria lutar pelo último suspiro, ou lutar até o fim.
   — Me deixe em paz Deus, me deixe ir! Eu já estou azul e fria; o céu escuro vai começar a brilhar, a solidão me puxa para baixo, mas o amor me levanta. Basta girar em volta, não há mais nada a não ser um lugar distante além desse mundo, mas eu não sinto mais nada...

22_ Ressaca em forma de pranto

   Diário, como já parece ser outro dia, sendo que o reflexo da lua ainda invade minha janela? Que diabos isso significa, quando tudo está acabado, mas nada será esquecido? Acho que nunca mais serei a mesma. Mas mesmo assim, eu não tenho medo, se eu só tiver mais uma chance de abraçar eles... Só um olhar amistoso vai me dizer tudo que preciso ouvir para então dormir em paz.
   E depois de tanto tempo nesse sonho, começo a acreditar que não ele era real depois de tudo isso que passou... Creio que não foi real todo esse tempo. Pelo menos eu tomei noção de uma coisa: isso não é um filme que me permite pular uma cena, tampouco um livro que eu possa fechar quando o capítulo acabar.
   Essa é a hora de pagar pelos erros cometidos dessa jornada. Tão rude, sai sem dar um beijo de despedida nas minhas amigas, nem agradeci aos meus amigos pelas conversas e toda a sabedoria que havíamos compartilhado. Não há como negar, estou assustada em perder as coisas que eu amo...
   Então, nós não podemos viver uma vida de paz e felicidade?
   Há quem acha que não....

quinta-feira, 16 de junho de 2011

21_ Último dia usual

   "A tarde gravada em nossa memória é a mesma que está registrada nas máquinas de fotografar dos amigos. Dois longos anos se passaram, e o fim desse dia apenas apontou o inicio de outra vida. Possivelmente não seremos os mesmos de sempre, e quem sabe se ainda vamos nos ver? Pode ser que um o outro se distancie de mim, mas muitos ainda estarão esculpidos em minha alma – sim, isso é verdade.
   Ahh Diário! Sinto-me feliz por ter isso ter acabado. A correria mudou de rumo, e agora estamos a um passo do futuro. Mas ao mesmo tempo, algo ainda me incomoda: estou ciente de que não vou conseguir suportar a saudade dos colegas de classe. Esses abobados marcaram minha adolescência. Malditos, ainda vou sentir a falta de vocês..."

   Não conseguindo segurar o riso, Camilla terminou de escrever, colocou o diário ao lado da cama e se enfiou embaixo das cobertas. Deu uma última olhada para o capelo da formatura, um chapéu quadrado de aparência meio tosca, mas simbolizava a concessão de grau e o poder temporário. Lastimável que esse domínio durou apenas uma tarde.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

20_ Nossa temporada

  “O garoto resolveu expor seus sentimentos, com o som de um gatilho - pena que quando se atravessa a linha, não há mais volta. Mesmo com a dificuldade de não ter amigos, ele começou a se sentir despreocupado, contente. Se o fizesse, talvez todos lembrar-se-iam dele. Sim, já fazia tempo, mas não havia sentido. Tudo aconteceu na noite em que o mundo se tornou mais calmo, mais leve; quando ele experimentou esse sentimento pela primeira vez. Confuso? Talvez... Não importa o quanto ele tentava, só lhe restava o seu fim, mas as palavras de outros ainda marcavam o seu caminho: “E não nos deixeis cair em tentação”.
   Porém, há essa hora, o mundo já havia voltado ao normal.
   Seus olhos não demonstravam mais angústia...
   Sua mente não pensava mais em desistir...
   Sua respiração estava aliviada...
   E seu coração já não batia descompassado.”

   Camilla virou o rosto e rasgou a página do livro que contava a história dum pequeno menino ingênuo de olhos acinzentados. Ainda com os olhos secos, prometeu a si mesma que nunca mais iria tocar nesse assunto, mesmo que isso ainda atormentasse suas noites, libertando-a nos primeiros raios de sol.

[Dezenove de junho de 2011. Hoje ela completaria dezessete anos, se não tivesse me deixado há mais de nove meses. Independente de onde esteja, ainda vamos nos encontrar.]

quarta-feira, 8 de junho de 2011

19_ Vitimas e seus vícios

— Diário, você não está desapontado comigo, está?

   Um silêncio tomou conta do cômodo. Claro que ela tinha ferido seus sentimentos.
   Talvez naquele momento, Camilla era apenas a mesma de sempre, como todas as outras, mas sem acusar terceiros por infligirem toda a dor. O diário esperava ver qualquer lágrima dela, mas nada aconteceu. Possivelmente, a garota estava confusa com a noite que estava vivendo.
    No fundo, o diário percebeu que não estava ignorando aquela menina que costumava ser fraca, ou que poderia não ter sido; era outra pessoa ali dentro, alguém comovido por não poder escolher suas amizades por falta de opção. Ela não tinha com quem conversar, e seu único amigo estava lhe ignorando, fazendo dele uma pilha de folhas rabiscadas e encadernadas, apenas um peso morto, mesmo não desejando isso.
   Tomou fôlego e, claramente, blefou:
— Eu o deixarei sozinho de novo, enquanto você está se fazendo de vítima!
— Garota, tente criar um garoto e transforme-o num cínico. Leve o amor dele e deixe isso se transformar em algo apaixonado, algo radical... Algo doente, enquanto eu mordo minha língua para impedir de quebrar o coração que eu gastei minha vida inteira procurando, o único coração que eu alguma vez precisei.
—  Diário! Eu existirei como se não sentisse convicção de minha ignorância, minha prisão perfeita. Mas eu sinto as punhaladas em meus pulsos e tornozelos toda vez eu tento...
— Esquecer-me?

   Ele estava se sentido gasto, e ela, insensata novamente. Sim, para seu companheiro, Camilla era um sonho, e ele apenas se fingiu de morto. Ela foi abençoada, e ele odiado. Ele é a constante, e ela, o seu vício.
   Talvez ela fosse a única paz neste mundo, e ele, algo intranquilo. Agora a audiência estava aplaudindo a drama de pé, focalizados na versão dela. Do outro lado do quarto, Camilla se sentia traída assim por suas esperanças, mas não se esconderia apenas por sua paz de mente.
   Ambos sabiam que isso iria durar mais alguns dias, mas ninguém desejava o sofrimento ao outro.

terça-feira, 7 de junho de 2011

18_ Corações e espíritos vazios

   Camilla não voltou para casa, não estava satisfeita. Pelo contrário, ainda precisava de alguém pra conversar. Não podia ser seu diário, pois esse sabia muito de muitas coisas. Pensou então nos tios, mas seria muito hipócrita se retornasse lá. Procurou um meio termo, mas a sua amiga estava ocupada no trabalho. Foi nesse instante que ela se lembrou do senhor da igreja. Não mudou o caminho, pois estava andando sem direção. Apenas virou algumas ruas e já conseguia visualizar a basílica. Qualquer um tomaria aquela construção gótica como algo assombroso agora sem iluminação. Suas torres já se perdiam nas nuvens e o saguão estava deserto. Passou um tempo olhando para os mesmo vitrais que viu quando entrou pela primeira vez e sentiu um pouco de medo: a igreja estava sombria demais!
   Um senhor curvado pela idade fez um gesto com as mãos, chamando a garota para o altar. Ela o reconheceu, era aquele senhor hospitaleiro que lhe deu as boas vindas. Estava feliz por revê-lo são e salvo depois te tantos dias e mais ainda por saber que a recíproca era verdadeira. Sem perder tempo, perguntou se o ancião estava ocupado para uma conversa, e ele aceitou com todo prazer.
— O que houve minha filha, por que estás aqui?
— Eu precisava de alguém para me aconselhar, me mostrar o caminho certo das coisas.
— E você tem certeza que veio ao lugar certo, né?

   A garota estava com medo de citar a ida ao bordel, mas só afirmou com a cabeça. Não queria que o senhor pensasse outra coisa, não que ele fosse julgá-la.
— Pois bem filha, nossa igreja está aberta a todos que precisam de ajuda.
— Mas porque ela está tão vazia?
— Ahh Camilla, não saberei te explicar. São as vontades carnais, e algumas pessoas se entregam a elas.
— E o senhor conversa com essas pessoas que não estão aqui?
— Para não mentir, muitas que estão ausentes hoje virão ao culto de amanhã.
— E quais são essas vontades carnais?
— São todas as vontades do corpo que comprometem o espírito. Como exemplo, vários homens daqui frequentam o bordel a noite, enquanto de manhã vêm ser perdoados.

   Camilla sabia que não deveria ter ido aquele local imundo, mas não sabia que era tão errado assim. Lá as pessoas se sentem felizes e satisfeitas, e como isso pode ser errado? Gostaria de fazer essa e várias outras perguntas ao homem, mas talvez ele não soubesse responder todas. Seus pensamentos estavam longe daquele altar. Honestamente, estava focada nos quartos imundos e o odor de suor daquele prostíbulo. Foi então que o arcebispo interrompeu suas idéias com seu questionário. Mesmo sem intenção, deixou a garota envergonhada pelos seus atos:
— Jovem, vejo que suas roupas dizem alguma coisa, mas sua boca não quer falar. Há algo que queira me contar?
— Acabo de voltar do bordel, senhor.
— Isso é deveras inaceitável! Uma garota como você não deve frequentar esses locais!
— Me desculpe senhor, eu só queria conversar com uma amiga minha que lá trabalha.

  O vigário ficou sem reações. Como alguém pode visitar uma casa de prostituição e não sofrer as tentações de lá? Quanto uma pessoa deve ser tão ingênua para isso? Conversar com uma amiga, mas que amiga é essa, e quais são as qualidades dessa mulher?
— Minha jovem, seu coração é muito puro e ao mesmo tempo muito vazio. Você já está salva, ou melhor, nunca se perdeu. Mas mesmo sã você não pode se misturar com alguém que possa te afogar nos pecados dessa vida.
— Obrigado senhor, e prestarei mais atenção no meu caminho.

   Ia indo embora, quando se lembrou da amiga. Nunca mais iria vê-la, nem deixar claro a razão. Segundo o arcebispo, seu caminho estreme pode ser modificado facilmente, e essa mulher poderia desviá-la sem muito esforço para a perdição.
Dormirá com uma última pergunta sem reposta: a meretriz está errada ou o senhor da igreja generalizou todos os injustos?

segunda-feira, 6 de junho de 2011

18_ Madame Bovary I

   Já se completara o segundo mês sem nenhuma novidade, apenas a mesma rotina de adolescente: estava terminando o ensino médio e se preparando para as provas finais. Seu diário estava cheio de anotações escolares e quase nenhum texto particular. Talvez isso e o fato de tê-lo guardado na última gaveta da cômoda seja o início do desentendimento. Nunca esteve cansada para conversar, pelo contrário, andava disposta a compartilhar suas emoções, mas não havia motivos para isso.
   Certa vez, Camilla foi conversar com a sua mais nova amiga. Foi preparada para isso, levou seus documentos, mas nada de valor, apenas uma quantia em dinheiro, caso precisasse alugar um quarto e a amiga durante uma ou duas horas, que fosse. O próprio dono do prostíbulo acharia estranha uma garota de 16 anos de idade procurando por um programa com a sua melhor prostituta, se não fosse o fato de que Camilla se vestiu a caráter de uma perdida, e isso não faltava naquele local. Talvez por causa desse pretexto, recebeu vários elogios, tanto de homens bêbados, como mulheres sóbrias, o que fazia sua vergonha aumentar.
   Estava na hora de partir, mas se fosse, não teria com quem conversar. Chegou a falar com a amiga meretriz, mas essa confirmou a agenda cheia. A jovem não retrucou, pois sabia o trabalho que a mulher tinha e que não podia se intrometer. Resolver deixar o quarto pago para outra ocasião. Agora ela está saindo do bordel triste por não ter desabafado com alguém. Mas que a via, imaginava outra coisa.

domingo, 5 de junho de 2011

17_ Dona do próprio céu

   Estavam ambos em cima do viaduto, conversando sob o céu estrelado como se fossem amigos íntimos. Cada um conhecia a situação do outro, e seus respectivos medos:
— Camilla, minha cara, porque você se encontra nesse estado? O que fizeram com sua pessoa? Eles estão sempre dizendo que há algo errado com você e estou começando a acreditar que isso seja verdade. Sabemos que a escuridão andou aqui por perto, mas não precisamos ouvir sua canção novamente; ela vem em ondas, me diga, porque convidai pra ficar? Os outros estão sempre dizendo que você é muito fraca para ser forte, mas você é mais dura com você mesma do que qualquer um.
— Ahh Diário, agora que você está sobre seus braços novamente, não consigo te dizer não. Nunca devia ter deixado eles me torturarem tão docilmente, agora não posso acordar desse sonho. Não consigo respirar, mas me sinto bem o suficiente.
— Eu não devia ter deixado sofrer por completo, agora não quer acordar desse sonho. Fico feliz que esteja bem, mas isso levou tempo demais.
Diário, meu Querido Diário, eu não consigo te dizer não, sei que não devo me apegar a algo tão bom assim, mas eu sou boa o bastante para você me amar também? Perdi-me completamente e não me importo. Se você quiser viver, vamos viver. Se você quiser ir, vamos então! Eu não estou com medo de sonhar, de dormir... dormir para sempre. Não quero tocar o céu, apenas sentir a altura, então não se recuse a me levantar. Mas lembre-se: se eu cair, é lá onde eu vou ficar.
— Garota, espere! Saiba que eu não serei sua redenção após tudo isso, então cuidado com o que deseja. Você é uma doçura, e eu também não consigo te dizer “não”.
— Oh Diário, implore para que meu coração partido bata. Pode ser que seja um sonho, e você dará seu amor para mim? Salve minha vida, mude minha mente. Mas se eu cair e tudo estiver perdido, sem nenhuma luz para iluminar o caminho, lembre-se de toda aquela solidão. É onde eu pertenço.

   Camilla acordou confusa. Ainda era madrugada, mas a lua se fora. Não tinha noção das horas e nem do sonho que teve. Olhou para o diário em cima da escrivaninha, perguntou o que seria da vida sem ele, e foi dormir feliz.
   Ainda não sabia, mas o céu estrelado dos seus sonhos, ainda que incrível, era real. E quem sabe, se essa garota não seja a verdadeira dona do céu?

sábado, 4 de junho de 2011

16_ A sombra da lua

   Camilla terminou de se desocupar, e o tédio tomou conta dela. Precisava sair e dar uma volta, aproveitar o céu estrelado que se formava sobre sua cabeça. Queria apenas curtir a vida, pelos menos uma única vez. Dessa vez, avisou a mãe antes de sair e lhe prometeu estar antes do próximo dia. Caminhou algumas ruas e cruzou o caminho das crianças brincando, e quando percebeu, estava cercada pelos risos e bagunças da folia. Sentia um ar alegre, mas mesmo assim, mesmo conseguindo sentir as risadas, se perguntava por que estava entristecendo. Num instante, a pequenada parou a diversão para observar aquela garota fugindo da roda e conversando com um livro velho:
Camilla: Ah Diário, como a lua consegue ser tão impressionante com sua fase crescente?
Diário: Camilla, as demais fases dela não lhe agradam?
Camilla: Sim, claro. Porém essa é especial. Pode parecer tolice, mas ela parece ter superado um período embaraçoso a si mesma e estivesse criando coragem para enfrentar suas dificuldades e brilhar novamente. Será que isso faz sentido?
Diário: Será que isso lhe é familiar?

   Um frio na barriga fez a pequena estacar. Tentou se lembrar de alguma ocasião que teria acontecido com ela, mas pensamentos desagradáveis vieram giram ao redor da própria cabeça. O ar que respirava tomou outro rumo:
Camilla: Diário, a lua sabe que terá uma vida maravilhosa? Será sempre admirada por todos?
Diário: É uma pergunta difícil. Cada vez mais pessoas param de olhar à lua, pois querem simplesmente pisar nela.
Camilla: Ouvi falar que já fizeram isso... Foi o início da sua desvalorização?
Diário: Materialmente falando sim, mas o que nos importa é o fato de a depredarmos espiritualmente. Percebe isso?

   Ela não sabia como responder, apenas assentiu com a cabeça. Nunca pensou que estaria magoando a lua. Pelo contrário, suas homenagens sempre foram as mais verídicas possíveis, mas não sabia se a lua apreciava a veneração. No fundo, Camilla ficaria triste se a lua fosse parar no céu de outra pessoa. Já lhe disse que não choraria por isso, mas imploraria por um motivo dela não poder ficar no seu próprio céu, como sempre fizera.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

15_ E na manhã seguinte, tudo estava bem

   Outro dia nascia e as lágrimas já secaram. Camilla levantou bem cedo com um belo café na cama, que se tornou num convite para ajudar a mãe a limpar a casa. Precisava arrumar seu quarto e fazer outras tarefas, e só assim estaria livre para aproveitar o restante do dia. Começou a espanar a estante quando viu de relance seu diário. Queria apenas terminar os afazeres, mas não venceu a vontade de escrevê-lo:
    "Diário, creio que eu esteja bem, mesmo não estando com cabeça para pensar sobre os fatos que haviam acabado com nossos espíritos, pois em algum canto da cidade, algo voltaria ao normal, à rotina. Serei entendida novamente e perdoada por tudo que aconteceu, mesmo se não tivesse uma parcela da culpa que agora pesa nos meus ombros? Oh Diário, se fosse possível... Creio que isso seria só questão de tempo, ou de anti depressivos, aqueles que fazem da minha vida algo mais tolerante. Mas acredite que eu esteja errada. Talvez eu seja uma hipócrita, mas não sinto que algo está errado, ou que vá durar uma longa temporada.
  Agora estou aqui, cheia de deveres, sem o direito de sentir sua falta ou de compartilhar meus prantos com alguém. Sinto vontade de caminhar contigo à noite, a fim de aliviar a respiração, mas a fase não me deixa sair. Sou obrigada a permanecer nesse quarto, observando as pessoas livres lá fora, mas porque elas são tão insatisfeitas, se estão em liberdade?"

   Lembrou então das tarefas e se despediu do amigo delicadamente, como sempre, guardando-o com muito carinho dentro da gaveta. Pegou o espanador e voltou a tirar o pó do armário, sem antes rir dos indivíduos de lá fora.

P.S: Não se esqueça, é apenas um sentimento passageiro, nós sabemos disso... eles sabem disso. Fique em Paz minha amiga.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

14_ A cidade está tranquila

   No mesmo instante, duas pessoas olhavam por janelas distintas, em casas longe uma da outra. A primeira observava as estrelas e a lua graciosa, enquanto Camilla, convivendo com a solidão do quarto, enxergava apenas as nuvens que a impediam de fugir para o céu. Pegou uma caneta qualquer do estojo e pensou em esvaziar a mente, deixar fluir os pensamentos.

   “Diário, meu Querido Diário...”

   Uma lágrima pingou dos seus olhos tristes e molhou o papel que mal tinha sido riscado pela caneta, borrando um pedaço da última palavra. Secou o rosto na manga da blusa, manchando toda a sombra que estava usando. Não sabia como lidar com as palavras da mãe, e mesmo experiente na arte de chorar, de expor seus sentimentos ao melhor amigo, hoje não foi possível continuar com as suas expectativas.
   Estava se perguntando como podiam existir pessoas assim no mundo, comodistas, oportunistas e indulgentes. São aquelas que deixam acontecerem, as que fazem acontecer e as que perguntam o que aconteceu. Insatisfeita, não se enxergou como uma das três, mas todas ao mesmo tempo.
   Ainda que cedo, a mãe avisara a filha que, a procura dela, o pai sofrera um acidente de carro. Queria não citar os detalhes, mas a filha insistira por isso, e não conseguiu desviar sua atenção. Segundo ela, preocupados com a ausência da garota que não deixou nenhum bilhete, decidiram procura-la pela vizinhança, mas todos haviam dito que ela saíra muito cedo de casa e caminhara cabisbaixa em direção à avenida. O pai passou a tarde atrás dela, mas sem sucesso, então voltou a procurar as seis da tarde. Foi quando estava parado num cruzamento esperando o farol verde acender, um caminhão ignorou o sinal vermelho e bateu na lateral direita do carro. Por causa do impacto, o veículo foi arremessado até o poste. Isso tudo foi o suficiente para levá-lo ao hospital com algumas costelas fraturadas e o pulmão esquerdo perfurado, além do estado de saúde instável, um equilíbrio que se destrói pela menor perturbação que possa ser adicionada.
   A mãe sabia que a filha iria se culpar pelo acidente e dizer que se não tivesse saído de casa, o pai estaria saudável. A única coisa que podia ser feita agora era segurar a mão dela e secar suas lágrimas, dizer que logo ele iria se recuperar e a família voltaria a se reunir. Camilla queria acreditar nisso, mas não conseguia. No fundo da alma, tinha noção do tamanho da tragédia que causou por insistir em seus ideais falhos. Só lhe restava aderir às idéias da mãe, e crer que a cidade dormirá tranquila.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

13_ Como se fosse um sonho

   Estava se perguntando como não conseguia se lembrar desse lugar, pois ficou tanto tempo ausente que muito dele havia mudado: o jardim não era o mesmo, estava sem suas estátuas de gnomos e as flores murcharam; as árvores perderam sua folhagem e seus galhos devolviam o aspecto de uma planície morta; o telhado perdeu suas telhas e as janelas não apresentavam vidros ou algo para impedir a entrada do frio. Era a sua própria casa, mas não conseguia se sentir achegada, apenas uma grande saudade dos pais e amigos que não estavam lá.
   Começou a andar pela casa, tentando desviar dos buracos no chão que pareciam chegar ao centro da terra. Verificou então quarto por quarto, até achar uma fotografia. A primeira vista, retratava a sua própria família, mas borrões não a deixavam ter certeza se eles realmente eram seus pais. Desesperada, ela correu para quarto e abriu a gaveta da escrivaninha, mas nada encontrou a não ser um livro encardido, rasurado por uma pessoa medíocre, desejando que ninguém existisse. Nesse caos, sem saber o que fazer, a garota foge dali, até a porta de entrada. Não pensa duas vezes e a abre num empurrão só, fazendo com que ambas caiam no chão.
  Ainda assustada com a situação, Camilla tentou gritar com todas as forças, mas seus pulmões estavam ardendo em chamas. Foi olhar ao redor para pedir ajuda, mas se viu em um lugar completamente diferente, como se fosse um parque de diversões, bem mais vivo que sua casa.
   Sua mente não estava ali, provavelmente tinha se separado do seu corpo quando encontrou o próprio diário. Agora confusa, se levantou um bocado cambaleante e decidida a explorar aquele local. Encontrou várias pessoas se divertindo no parque, chegou até a enxergá-las nitidamente, mas elas não a notavam, apenas continuavam a se divertir.
    Mesmo que fosse um clima estranho, Camilla se sentiu desprezada, mas o sentimento aliviou-se quando um carrossel apareceu no horizonte. Esse por sua vez era gigante, brilhante e alegre, e foi poupado das criticas, diferente da montanha russa, lembrando da inércia que brincava com os corpos dos indivíduos, enquanto esses apreciavam a vertigem causada pelo monstro metálico. Permaneceu minutos apreciando os cavalos pintados quando algo tirou a atenção dela. Alguém, mesmo longe, gritava seu nome, mas Camilla não sabia de onde o som vinha. O timbre foi aumentando e os ruídos do parque, sumindo, até que o silêncio tomou lugar. Um último chamado, dessa vez mais perto, fez seus pelos levantarem e o corpo estremecer.
— Camilla, acorda!

   Mesmo sem saber o que estava passando, Camilla levantou-se aliviada por ter deixado aquele pesadelo, e abraçou a mãe. Um amor maternal fez seu coração transbordar, mas não foi o suficiente para conter as lágrimas da notícia que a mãe trazia.