"E tu, bondosa alma, que te sentes tão angustiada como ela...
Consola-te com os seus sofrimentos, e permite que esta pequena personagem se torne sua amiga
(com todo vosso zelo e compaixão) que, por destino ou culpa própria, não tiveres outro mais próximo.
Não poderei recusar vossa admiração e amor para essa alma, nem ao seu caráter.
E com lágrimas, acompanhe o seu destino."

Sofrimentos do Jovem Werther (Primeiro Livro) - Goethe

domingo, 28 de agosto de 2011

54_ O córtex dissonante II


Assim, dois homens vestido de maneiras distintas chegaram à encruzilhada. Um deles, aparentemente perdido, se chamava Todo-o-Mundo. O outro bem pobre (mas de cabeça erguida, o que me impressionou muito) se chamava Ninguém. Passaram-se alguns instantes até começarem a conversar, e minha condutora, em silêncio, esticou a mão com uma pena e um pedaço de pano amarelado.

Ninguém: O que anda procurando amigo?
Todo-o-Mundo: Busco dinheiro, gastando meu tempo inteiro.
Ninguém: E eu me chamo Ninguém e busco a consciência. Outro bem maior que esse?
Todo-o-Mundo: Busco quem me adorasse por tudo que eu fizesse.
Ninguém: E eu quem me repreendesse em cada coisa que errasse. E agora, o que busca aqui?
Todo-o-Mundo: Busco honra muito grande.
Ninguém: E eu quero apenas virtude.
Todo-o-Mundo: Também procuro muito o paraíso.
Ninguém: E eu ponho-me a pagar pelo quanto devo para isso.


CAMILLA, QUE ISSO LHE SIRVA DE EXPERIÊNCIA: TODO-O-MUNDO BUSCA DINHEIRO, ENQUANTO NINGUÉM A CONSCIÊNCIA.
            O que mais devo anotar?
O QUE JÁ DEVIA TER APRENDIDO: TODO-O-MUNDO QUER SER LOUVADO, ENQUANTO NINGUÉM SER REPREENDIDO.
            O que mais escreverei?
A LIÇÃO DA JUVENTUDE: TODO-O-MUNDO PROCURA HONRA, E NINGUÉM PROCURA POR VIRTUDE.
            Mais algo?
SEREI BREVE: ESCREVE QUE TODO-O-MUNDO QUER PARAÍSO, E NINGUÉM PAGA O QUE DEVE.

   E foi dessa forma que eu aprendi, mais tarde, que não sou ninguém, e muito menos me comparo a todas as outras pessoas do mundo.
   Pelo contrário, nunca busquei nada, e se eu perder algo hoje, não sentirei falta de imediato."

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

53_ O córtex dissonante I

 “E assim fui levada por uma mulher muito parecida comigo, porem uns dois ou três anos mais velha e tanto depressiva quanto eu (o que chegava a me penalizar, pois quem saberia me dizer se um dia eu me tornaria ela?).
   Viajamos durante um bom tempo, mas sem noção das horas que nós gastamos caminhando, nem do quanto andamos em silêncio. Só me restava esperar pelo final, qual quer um que este fosse. Atravessamos ruas, trilhas e desfiladeiros; cruzamos avenidas, campos e lagos, mas continuamos além do horizonte: mesmo que um fosse vencido, haveria outro para desafiar. Acima de nós, nenhuma nuvem ou estrela, tudo que consegui enxergar era manchas sem cor e borrões sem forma.
   Paramos ao pé de um monte não muito alto com uma casa construída no seu topo, mas sem escadas nem outra maneira de chegar nela. O único caminho, a partir de agora, era contornar o obstáculo e pra isso, dois caminhos eram a solução.

Chegamos?
CHEGAMOS AONDE? E ONDE VOCÊ PRETENDE IR?
            Pretendo ir a lugar nenhum.
ENTÃO JÁ QUER VOLTAR PARA CASA? IR PARA TERRA FIRME?
            Eu não sei aonde ir.
ENTÃO SIGA A DIREITA.
            E por que não pela esquerda?
PRA QUEM CAMINHA SEM DESTINO, QUALQUER CAMINHO SERVE. CONCORDA COMIGO? AGORA FIQUE CALADA E ASSISTA. SE PRECISAR, TOME NOTA DO COVENIENTE, MAS NÃO ATRAPALHE A HISTÓRIA: ELA É MAIS ENGRAÇADA E MUITO MELHOR QUE A SUA.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

52_ O pior inimigo


   Três, três e meia da manhã. Todo o prédio jazia sob o sono agasalhador. Todo o prédio, menos um apartamento...
   Aquele comprimido não acabara com as dores de cabeça; pelo contrário, criou um caos dentro dela e agravou os sintomas. Desde então a menina começou a soar frio e várias alucinações dominaram sua mente. A última delas, porém, foi um pouco diferente das anteriores: era ela sentada na mesma cama conversando com alguém muito parecido com ela, mas os olhos fundos e as pupilas dilatadas. Causaria medo em qualquer outra pessoa se não estivesse acostumada com o estado da Camilla e portanto, ninguém entenderia a visita nem poderia ajudar a enfrentar o pesadelo.

CHEGUEI CAMILLA!
VOCÊ QUE SE PROTEGE TANTO QUE SE ENGANA ATÉ EM SUAS PRÓPRIAS APTIDÕES. VOCÊ SE SENTE ESPECIAL POR QUE ESCREVE? VOCÊ É SÓ UMA ESCROTINHA MIMADA, CAMILLA.
            Isso não é verdade.
SEUS RASCUNHOS SÃO VAZIOS, NÃO DIZ NADA. SÓ SATISFAZ SEU PRÓPRIO EGO.
            ...
ESTÁ NA HORA DE VOCÊ QUEBRAR!
            Eu já superei isso!
JÁ? COMO VOCÊ SUPERA ALGO QUE VOCÊ NÃO ENTENDE? VOCÊ ACHA QUE ESTÁ TUDO BEM SÓ PORQUE ELES PARARAM DE TE ENCHER O SACO! MAS OLHA A FERIDA FRESCA AQUI!
            Pára, foi ele quem me machucou!
ELE TE MACHUCOU? NÃO! ELE É SINCERO NO QUE ACREDITA. E VOCÊ, NO QUE ACREDITA?
            Vai embora!
COVARDE! VOCÊ É TÃO PRESA A SUA ROTINA QUE VIVE FELIZ NADANDO EM MENTIRAS. VOCÊ É UMA FRACA! NEM SABE DIZER SE REALMENTE EXISTE.
            Eu não sou fraca!
AH NÃO? ENTÃO VENHA COMIGO! VOU TE LEVAR PARA CONHECER O LUGAR DE ONDE VIM.
            ...
VOCÊ VAI FICAR SÓBRIA POR UM DIA E DESCOBRIR ONDE ERROU. QUE ISSO FAÇA ALGUM SENTIDO PARA O QUE RESTA DE VOCÊ!
            ...


            ...
            Tudo bem, eu vou com você...

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

51_ Véspera de pesadelo


   Estava revitalizada após o banho e a refeição. Mais o primeiro que a segunda que fez efeito significativo, pois nem de longe a água quente e renovadora podia ser comparada aos finos hashis que tardia a encher, de grão em grão de arroz, uma robusta garfada.
 — Se você não estivesse tão mal assim, eu te ofereceria um pouco de saquê.
 — Posso te acompanhar, mas não bebo.
 — E não beber é opção, amiga. Eu que não posso me servir, é falta de educação.
 — Está certo. Se tiver Coca-Cola, eu aceito.

   E assim, uma servia a outra com suas respectivas bebidas no copo enquanto os ponteiros de um relógio oval se satisfaziam com cada tic tac, desabando para a direita do disco.
 — Hum, acho que já é hora de irmos dormir.
 — Espera mais alguns goles!
 — Isso vai te fazer mal... Continuamos outra hora.
 — Calma. A partir da terceira ou quarta, eu começo a enxergar dragões.
 — Mas esse copo deve ser o sexto.
 — E até agora não vi uma iguana se quer.
 — Chega! Vamos dormir, só vou tomar um remédio.

   Assim, a nossa jovem revirou a bolsa atrás do que havia ganhado do taxista mais cedo. Ao encontrar, não hesitou em tomá-lo, pois era simplesmente para dor de cabeça. Pegou um copo d’água, colocou o comprimido na ponta da língua e engoliu-o junto com a bebida.

   E a partir de agora, tudo se encontrará na mente dela, e alguém não terá bons sonhos...

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

50_ Os espelhos do Nirvana


   Diferente do bairro, o prédio era magnífico! Seus jardins sob as luzes dos postes eram tão verdes quanto qualquer outro da vizinhança em pleno dia ensolarado; as sacadas dos apartamentos, uma de cada vez, convidavam seus vizinhos a se hospedarem no lar, enquanto que cada morador trazia um sorriso diferente no rosto, totalmente pessoal, mas tão amigo quanto os outros. Naquele lugar, todos se respeitavam, tanto que o salão de festas era usado semanalmente.
   Subiram por um elevador espelhado, onde aproveitaram para tirar algumas fotos, mesmo que a nossa menina não fosse fotogênica. Tudo isso ao som das músicas de elevadores tanto comum em filmes e seriados da televisão. Alguns minutos depois da diversão, ambas chegaram a um apartamento no mínimo, diferente: seu interior era novo aos olhos da Camilla devido ao tema oriental. Tanto que um gato balançando a mão direita se encontrava embaixo de uma espada fina japonesa e vários espelhos estavam fixados nas paredes.
 — Está salva, minha amiga! Só não esquece de tirar os sapatos.
 — Aqui é... lindo!
 — Isso é verdade, e acho que nunca vou me esquecer daqui.
 — E tem como?

   Mesmo que isso tudo fosse incomum, era estava se sentindo em casa.
 — Separei algumas roupas pra você colocar depois do banho. Vou arrumar sua cama, está bem?
 — Obrigada por tudo.
 — Isso é o mínimo que eu podia fazer. Te ver naquele estado é horrível!
 — Então você é meu anjo da guarda?
 — Eu gostaria de ser. Agora vai lá se banhar, a janta está quase pronta, e você deve estar faminta!
 — Como adivinhou?
 — Ora, você anda cambaleando. Ou é fome, sono...
 — ...Ou os dois ao mesmo tempo.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

49_ Tal anexo

   Quero ir para casa mais cedo pra te ver,
 Mal posso esperar para te abraçar!
 Você é tudo e mais um punhado; eu sou tão errante, frágil e nervosa.

 Quase perco a visão, mas quando te vejo isso piora
 Pois a tensão é gigantesca longe de ti, e...
 Tudo que eu preciso para torná-la real é mais uma razão.

 Eu já existo pela necessidade de te ver,
 E não estava esperando isto se revelar. 
 Mas as peças são tão boas quanto o todo...

 Afaste-me da minha própria mentira
 E retire a única coisa que estava errada, pois
 Eu quebrei minha promessa ingênua, mas...


 E se eu nunca mais vê-lo novamente?

domingo, 14 de agosto de 2011

48_ Saudades do velho amigo

   Eram altas horas. Talvez já houvesse passado das onze.
   A garota chegou ao endereço, mas não sabia qual dos prédios era o certo. Não havia ninguém na rua para dar informações, e mesmo que as pedisse possivelmente ninguém saberia dizer onde tal pessoa morasse. Eram muitos arranha céus, milhares de apartamentos. A possibilidade de não encontra-la assustava e o mais sensato era ligar e pedir para que alguém a encontrasse.
   Depois de feito, e enquanto aguardava, restava sobreviver até a chegada do anfitrião. Sua dor de cabeça ainda não baixou, e muito menos havia cessado, restringindo as atividades que podiam ser feitas, como ler, escutar música ou escrever...
   Não poder escrever. Foi assim que ela havia se lembrado não só do amigo em casa, mas também da promessa feita a ele: “deixarei você por uma noite. Uma noite e apenas isso”. Mas isso não está sendo cumprido, pois mesmo que a noite não tivesse acabado ainda e outro dia começado, a sensação de que semanas se passaram corrói a mente da pequena, o suficiente para resgatar o sentimento de irresponsabilidade com quem mais se preocupa com ela, talvez mais que os próprios pais.
   Num ato corajoso, Camilla começou a rabiscar um pedaço de papel encontrado na rua. Esse tal pisado e sujo seria, mais tarde, anexado ao diário ou tudo acabasse com o texto passado a limpo no mesmo destino.
   Assim, alguns minutos se passaram, e logo vários, mas ninguém veio ao seu encontro e sentada, perdeu algumas horas, enquanto as memórias desapareciam e um simples instante tornou-se um momento infinito apenas dentro da própria mente.

   Alguns “dias” depois de começar a escrever, alguém se aproximou e sentou ao seus pés, mas o ar sarcástico o denunciava de longe
 — Ei, Camilla, vai passar a noite ai mesmo? Se precisar de um banho e descanso, pode me seguir, ta bom?

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

47_ Atalho das transgressões


   À primeira vista, o táxi era tão confortável como parecia ser do lado de fora, principalmente se os filtros de cigarros e as latas de cerveja rolando pelo assoalho fossem levados em conta. Por educação, a garota  tentava ignorar o odor nauseante, mas esse era mais forte e roubava-lhe toda a atenção, e o que lhe restava era suficiente para lembrar a dor de cabeça. Sem que isso tudo fosse suficiente, ainda era bombardeada por futilidades do taxista.
 — Você não está bêbada, está?
 — Não.
 — Sim, sim... Só evite sujar o estofado. Custa caro mandar lavar isso.
 — Senhor, eu não estou bêbada, apenas...
 — Usou drogas?
 — ... Estou com dor de cabeça.
 — Oras, pra isso eu tenho cura.

   E com uma mão no volante, começou a vasculhar o porta-luvas em busca de algo.
 — Achei! Aqui está, pequena.
 — Agradeço, mas eu não preciso não senhor. Isso já vai passar.
 — Que isso. Eu insisto, e tem muito aqui. Sei que você vai ficar bem melhor, só não tenho água aqui.

   Cedendo a insistência do rapaz, fez um gesto de tomá-lo, mas o escondeu entre os dedos da mão e guardou o remédio na bolsa.
 — Senhor? Pode me deixar ali na frente.
 — Mais algumas ruas e chegamos, não tenha pressa.
 — Não se preocupe, posso ir andando agora.
 — Faço questão de te deixar no endereço. Agora pode deitar e descansar a cabeça.

  “Como o taxista insiste tanto em me levar até o local?”
— Olhe; a próxima rua é contra-mão e o senhor vai precisar contornar o bairro. É melhor eu seguir a pé daqui pra frente. Quanto custou?
— Trinta reais, mais cinco pelo remédio.

   Alguns minutos depois, dois vis conversariam sobre o dia cansativo, a noite refece, os passageiros que haviam sido transportados pela cidade, algumas fofocas e, óbvio:
 — Cara, você nem acredita: levei uma perdida com macacoa até um canto lá e a droguei.
 — E ai? O que houve? Rolou?
 — Nem. Não teve nada de mais, ela saiu antes do comprimido fazer efeito. Com certeza vai ter uma noite ótima!

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

46_ Desconforto, e piorando

[Não sei que horas são, nem quem culpar pelo atraso, e muito menos em qual direção o vento sopra lá fora... ]

   Nossa jovem, mesmo sabendo de seus compromissos, decidiu apenas pegar o atalho mais longo pela calçada da avenida, a fim de adiar o próprio choro (mais tarde, ela vai descobrir que não foi uma boa escolha). Estava a caminho de casa, e tudo naquela noite estava indo tão bem, a não ser pela dor de cabeça que surgira ao sentar na escada da igreja. De lá pra cá, tudo havia piorado: sua dor aumentou, uma febre surgiu e calafrios marcaram a noite quente e seca.
   Ainda estava sorrindo enquanto a noite se ia, ignorando as gotas de suor e o peso enorme que o presente havia ganhado graças ao cansaço. Conseguiu andar mais alguns metros até precisar se sentar para repor o ar. Em questão de minutos, estaria em casa, provavelmente tomando um merecido banho, então só lhe restava aguentar mais um pouco.
   Lembrou do convite ao olhar para as mãos trêmulas, e o que havia nelas não podia ser entregue em outra data, pois perderia todo o significado e a mágica. Ficou em pé, levantou a mão vazia com um gesto e um carro parou ao seu lado.
 — Por favor, me leve nesse endereço?

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

45_ A grande loja de sonhos

   Já era noite, e ela estava voltando para casa, mas parou no meio do caminho; esquecera que veio atrás de uma única coisa. Não sabia as horas, e nem se ainda tinha tempo para o combinado mais cedo.
 — Vamos ver... Ainda posso comprar o presente, se eu for bem rápida.

   E sorridente, entrou em uma loja de presentes bem pequena. Não tinha certeza do que comprar, mas este era o local certo, mesmo com as estantes empoeiradas dizendo como a clientela era ausente naquele tempo, por motivos banais: lojas maiores e um shopping recentemente construído eram seus principais concorrentes quando se falava de brinquedos e passatempos. O dono do local, um estrangeiro que, buscando uma vida melhor, veio para o país, não reclamava dessa realidade e, humilde como sempre, tirava o sustento da família dos brinquedos vendidos às crianças com condições melhores.
   Bolinhas de gude, ursos de pelúcia, carrinhos de madeira, bonecos de plástico... Nada eletrônico, visto que esses causaram um grande trauma ao dono: por causa de produtos de grande valor, a loja já fora assaltada várias vezes.
   A garota estava a procura de algo que fosse simples a primeira vista mas...
 — Algo especial em mente, minha jovem? Alguma coisa simples, mas com um grande significado?

   Uma voz suave no timbre, mas muito experiente soou atrás dela. Era um senhor sexagenário, provavelmente o dono do local. Usava um óculos com a lente direita trincada, sinal da escolha entre arrumá-la ou garantir a educação dos filhos. Em menos de quinze minutos, mostrou todas as estantes à moça.
    A mesma moça que, instantes depois, caminhava alegre e satisfeita com uma sacola embaixo do braço.